terça-feira, 31 de dezembro de 2013

O lugar de onde a gente nunca devia ter saído



Depois da despedida da tarde, a noite veio suave visceral.
Os pneus afagam o asfalto iluminado pelos faróis do carro.

Finalmente, de novo contigo nesse ambiente -
o lugar de onde a gente nunca devia ter saído.

Não importa se porta afora
o mundo todo ignora
o céu profundo
que a noite quente decora:
protegidos um pelo outro
nós temos tudo
(menos motivo
                  pra ir embora).

Me salve, 
enxague meu espírito ensaboado de melancolia. 
Canta, dança. 
Não ligue pra distância -
me alcança.

Vem comigo, 
cavalga minha alma, 
devolve o sentido pra essa cidade fantasma.
Vem comigo,
me faço de novo seu asilo 
tranquilo e morno,
tarde de sol no azul sonolento de outono,
seu companheiro e hospedeiro,
carnaval pra um ano sem fevereiro.

Protegidos um pelo outro,
não importa se o mundo lá fora,
indiferente ao céu que a noite decora,
não sente -
nós sentimos
e isso é o suficiente
(antes,
         agora,
                   sempre).

domingo, 22 de dezembro de 2013

O carnaval da inocência agonizante

o que se vê na Avenida?
helicópteros de reportagem empesteando o pôr-do-sol
vagões do metrô se rastejando trazendo imigrantes e acenos
frenesi nas vias expressas
ônibus lotados
sinalizações desenhadas a giz

o que se vê na Avenida?
linha cinza na altura dos olhos
um horizonte de prédios
calçadas encharcadas
bairros cheirando a inseticida
apartamentos a mofo

o que se vê na Avenida?
sentinelas acenando em vão
mendigos perdendo dentes
prostitutas e travestis tomando seus lugares aos primeiros sinais de vida dos postes
autoridades acionando alarmes e despachando documentos inúteis
cães passando a noite latindo

o que se vê na Avenida?
o frio da madrugada
o sol nauseante
o cansaço enchendo os olhos
a doença rastejando
a vida se tornando um passeio com a namorada num fim de domingo

o que se vê na Avenida?
a beira do abismo armada feita um circo esperando espectadores

o que se vê na Avenida?
o azedo amargo doce trazido pelas asas dos aviões
pelas turbinas que semeiam turbilhões

o que se vê na Avenida?
garras e asas
pássaros abandonando o horizonte
o verão aceso trazendo o sol tóxico
e um céu intoxicado de mágoas

o que se vê na Avenida?
a guerra no escuro da rua
sob sombras que o sol não autorizou

o que se vê na Avenida?
taças de vinho azedo
taças de vinagre
saliva escorrendo livremente pelos azulejos
sangue brincando feliz no calor das noites sem nuvens
contagem regressiva no coração

o que se vê na Avenida?
instalações abandonadas
pétalas placas de pedestres
luz concreto entulho detritos
ferrugem
lixo poeira demência

o que se vê na Avenida?
aspas reticências
um suspiro
traços signos sinais
máscaras símbolos
sílabas iluminadas
sílabas tatuadas na pele ardente e cheirosa de inúmeras noites gravadas nos nossos olhos

o que se vê na Avenida?
nosso riso comprometido pelo pó do caminho
nossa tribo dispersa rindo descontraída no terceiro andar
nossa tribo acossada por um não sei quê de medo do futuro e desejo de morte
nossas vidas transformadas em boatos nas bocas de lobo

o que se vê na Avenida?
o curto circuito da alma
a liberdade asfaltada
o progresso alcançado
a lógica sádica do século

o que se vê na Avenida?
o carnaval da inocência agonizante


domingo, 15 de dezembro de 2013

Banzo


Não adianta acender outro cigarro
ou se encolher no sofá
esperando a noite chegar.
As estrelas estarão ausentes
enquanto os seus olhos não voltarem a
a provar o príncipio
ativo da noite.

Aquele lugar que parecia o seu
já não é mais que uma recordação adolescente.

Lá não há mais nada pra ver
a não ser os carros procurando rua pra andar
e rostos que não movem músculos
quando te veem passando
desorientado pelas calçadas.

As vozes não são familiares
nem os cantos convidativos –
nenhuma sensação digna
de um minuto a mais
de permanência.

O fim do mundo passou
e as árvores continuam sendo podadas.
As flores parecem confusas
com a mudança repentina
da extensão e data
das estações.

Mas estamos vivos ainda
e você espreme seu coração
e alma
a fim de verter
mais um verso,
que parece o último,
mas nunca será.

Os poemas jazem exaustos
de indiferença,
de tanta melancolia,
de hesitação,
de medo.
Não há poesia entre as quatro paredes desse cubículo suspenso
que sua covardia adotou como lar.

Passou o tempo em que você via fadas incandescentes
nas fagulhas das fogueiras
feitas nas noites frias de julho.
Seu violão reclama,
sente sua falta.
Nenhum acorde é capaz de traduzir sua necessidade de silêncio.

E eu finjo que entendo, que me conformo, fico quieto. Não sei se ainda existe alguma palavra pra te devolver a vontade
de visitar a vida,
de mergulhar
no milagre dos dias.

Só te peço:
mantenha
os olhos e ouvidos abertos,
pois enquanto as noites derem lugar aos dias,
haverá símbolos pra nos conduzirem
ao caminho
e à fórmula.

Ilustração: Diogo César, Mr Bread is confuse about the ways of his life

domingo, 1 de dezembro de 2013

Quando sua pele toca a minha



quando sua pele toca a minha
é sempre assim
desaparece a linha
que separa você de mim
e o que me reveste
passa a ser
só uma camada de prazer